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27 de dezembro de 2009

Poema de Natal

Carlos Pena Filho

- Sino, claro sino, tocas para quem?
- Para o Deus menino que de longe vem.

- Pois se o encontrares, traze-o ao meu amor.
- E o que lhe ofereces, velho pecador?

- Minha fé cansada, meu vinho, meu pão,
- Meu silêncio limpo, minha solidão.

PENA FILHO, Carlos. Livro Geral - Poemas, Recife, Ed. Liceu, 1999.

24 de dezembro de 2009

Poema de Natal

Jorge de Lima

Ó Meu Jesus, quando você
ficar assim maiorzinho
venha para darmos um passeio
que eu também gosto de crianças.

Iremos ver as feras mansas
que há no jardim zoológico.
E em qualquer dia feriado
iremos, então, por exemplo,
ver Cristo Rei do Corcovado.

E quem passar vendo o menino
há de dizer: ali vai o filho
de Nossa Senhora da Conceição!

– Aquele menino que vai ali
(diversos homens logo dirão)
sabe mais coisas que todos nós!
– Bom dia, Jesus! – dirá uma voz.

E outras vozes cochicharão:
– É o belo menino que está no livro
da minha primeira comunhão!

– Como está forte! – Nada mudou!
– Que boa saúde! Que boas cores!
(Dirão adiante outros senhores.)

Mas outra gente de aspecto vário
há de dizer ao ver você:
– É o menino do carpinteiro!

E vendo esses modos de operário
que sai aos domingos para passear,
nos convidarão para irmos juntos
os camaradas visitar.

E quando voltarmos pra casa, à noite,
e forem para o vício os pecadores,
eles sem dúvida me convidarão.

Eu hei de inventar pretextos sutis
pra você me deixar sozinho ir.
Menino Jesus, miserere nobis,
segure com força a minha mão.

Soneto de Natal

Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

(Texto extraído do livro "Poesias Completas - Ocidentais", 1901)

21 de dezembro de 2009

Poema de Cícero Melo

Albedo

Cicero Melo

Apenas sou o que cala,
A cicatriz.
Um soco porco que estala
Pela raiz.

Eu sou aquele que entala
Pelo nariz
O vinho tinto da bala,
Escrava, atriz.

Eu sou o falo da fala,
O meretriz.

(Recife, 21 de dezembro de 2009)

18 de dezembro de 2009

Poemas alagoanos

Noturno em Jaraguá

Norton Sarmento Filho

Night and day, São Jorge, Tabariz,
Rua Sá e Albuquerque, marinheiros gregos,
noruegueses, finlandeses, indianos,
filipinos, etc ..................................
e o porto em frente testemunhando
a devassidão de corpos ébrios –
naufragados de sonhos e erotismo.

Os antigos casarões concupiscentes
eram os eternos coniventes do amor,
e nas suas fesceninas alcovas
eros perpetrou o solitário orgasmo,
no monte de vênus da sedenta meretriz.

Night and Day, São Jorge, Tabariz,
Rua Sá e Albuquerque, marinheiros gregos,
noruegueses, finlandeses, indianos,
filipinos, etc ...................................
e a noite do tempo não passou ainda,
nem o charleston nem o tango, o bolero,
o samba, o rock, o twist, a pop music
e todos os corpos que se amaram
em Jaraguá nightorrentemente.


En memória de César Figueiredo

Héctor Pellizzi

Me duele la noticia de la muerte de Cesar
el petiso que tenía estrellas em la mirada.
Claro y simple, com su bohemia prendida
en el azul de sus manos.

Yo lo recuerdo bajo la noche de Maceió,
en aquel bar, com Wanderley y Marcos Farias,
me acuerdo de la última copa,
de su ultima sonrisa, de sus espaldas doloridas.

Pero más me acuerdo de la primera vez,
quando me dió su libro, e um abrazo
y la borrachera de alegria y de cerveza
que compartimos com Norton
aquel barbado y lúcido alagoano...

Me duele su muerte com puñahales
incomprensibles e se me atraviesa
em la garganta la impotencia
de volver a Maceió y no encontrarlo.

(Escrito pelo poeta argentino em homenagem ao escritor alagoano)

13 de dezembro de 2009

Melhores poemas que eu li

Dois e dois são quatro

Ferreira Gullar

Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena

Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.

Melhores poemas que eu li

Mar Portuguez

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

4 de dezembro de 2009

Meus poemas

Para Lêdo Ivo ao modo de Sidney Wanderley

Iremar Marinho

Ninguém sai do poema de Lêdo
Sem o mar estético
Sem as várzeas fluidas
Sem as raparigas do Cavalo Morto

Ninguém sai do poema de Lêdo
Sem lama lacustre
Sem dormir com as putas
Dos velhos sobrados
De Jaraguá redivivo

Ninguém sai do poema de Lêdo
Sem o açúcar bruto
Do porão das naves
No porto ancoradas

Meus poemas

Moto-poema

Iremar Marinho

Tive um poema
sua forma era
seu vazio-noite

Tive um poema
seu motivo era
seu moto-perene

Tive um poema
que persigo a mim
do fundo do espelho

Tive um poema
que perdi na aura
da morfometase

Tive um poema
de raro segundo
que me esvaiu

Tive um poema
que vida não tive
(um tema-revide)

3 de dezembro de 2009

Poema de Cícero Melo

Conspiração das musas, por certo.
Ao levantar-me para caminhar,
hoje, às 5 horas, "enquanto a chaleira
chiava", liguei o computador e abri
este Bestiário e o e-mail, deparando-me
com o aviso lacônico do poeta:
"Nasceu agora. Pode publicar".
Eis aí:

O perfume da ternura

Cicero Melo

Ventos perfumados com
Ternuras vestidas de
Leitos de sedento som.
Amores amargos a me
Dar sombra; passava por
Seios e sonhos, entre
Vargens de velada cor,
Vozes de vinhoso ventre.
Amores voavam, pois
Nos desejos ocos, em
Volta do sonho depois
Do que nada nunca vem.

1 de dezembro de 2009

Poemas de Cícero Melo

O poeta Cícero Melo, alagoano de União dos Palmares,
radicado no Recife, é, sem favor algum, um dos fortes
poetas em atividade em Pernambuco.

Como genuíno artista da palavra, nada tem de vulgar,
nada concede ao fácil. Com ele renova-se o nosso
melhor lirismo — em imagens, em musicalidade,
em domínio de técnica.

Sob esse último aspecto,
é visível seu gosto pela métrica e de extremo
bom senso o uso do verso livre com o necessário
rigor que este merece.

Foi o que fez desde mais jovem para abrir clareiras
à melopeia que permeia a sua poesia.
Ler e reler a poesia desse poeta tão inteligente
quanto avesso à chamada “vida literária”
é um permanente prazer. Vejam fragmentos
de seus livros Poemas da Escuridão
e O Verbo Sitiado, publicados
pelas Edições Bagaço, no Recife.

(Quem é esse que traz os pés cativos
À sentença de acasos e de meses,
Vago morto que aprende com os vivos?
Quem é esse de sonhos insepulto?)
Me perguntaram e neguei três vezes
Que era eu mesmo pelo mundo oculto.


Vênus Furiosa

A semente do amor rebenta a chama
E transita de novo o ser amado.
Ardor de mar sem foz, torpor alado.

Mas se Eros te foge, o amor reclama.

É sedosa a casa de quem ama
E sedento o jardim do seu cuidado.


Moldura

Desce rumo à infância
A morte despertada.
Pó e pesadelo
Nunca envelhecem.


Todos os pintassilgos morrerão

Todos os pintassilgos morrerão.
Morrerão todos os cantares.
Todos luminares morrerão.
Cegarão todos os olhos.
Todos os ossos secarão.
Ninguém se evadirá:
Todos serão sequestrados.

Esta é a cruz calcificaada
Em todas as mentes e margens.

Todos os pintassilgos morrerão.
Morrerão todos os monarcas.
Todas as menarcas cessarão.
Matarão todos os morgues.
Todos os morbos medrarão.
Não haverá anistia:
Todos serão executados.

Amarga fotografia enforcada na insônia...

24 de novembro de 2009

Melhores poemas que eu li

Tecendo a Manhã

João Cabral de Melo Neto

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(A Educação pela Pedra)

18 de novembro de 2009

Quilombo Brasil

Iremar Marinho

"Faremos um povo de igual rebeldia.
Faremos um povo de bantus iguais.
Faremos de todos os lares fraternas senzalas sem mais.
Faremos a negra utopia do novo Palmares..."
(Missa dos Quilombos, Dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento)

"Zumbi poderia salvar Palmares, mas já não tenho esperanças".
Esta confissão de desesperança do professor palmarino Dílson Moreira da Costa, na comemoração dos 300 anos de Zumbi, acentuou a expectativa dos afrodescendentes, no vasto quilombo Brasil.

Precisamos esperar 300 anos para ouvir ecoar o grito de Palmares e constatar que a senzala resiste, diante dos quilombolas dispersos. O sistema econômico injusto é nada mais que a oficialização do regime de capatazia, que perpetua a escravidão dos baixos salários, do analfabetismo e da discriminação.

Os mesmos senhores feudais concentram as riquezas, alargando o fosso das diferenças entre as origens nobres européias e o porão dos navios negreiros. A abolição da escravatura não inclui a abolição da fome, da miséria e do preconceito. A servidão das senzalas continuou nas favelas, que são guetos à espera da libertação.

O apartheid brasileiro é ainda mais avassalador, porque lança seus fundamementos perversos na história oficial do país, para a qual a resistência quilombola foi apenas um episódio romântico e heróico, repassado com a perspectiva de que não se repetiria hoje, por não existirem mais os pressupostos da escravidão.

A própria comemoração dos 300 anos de Palmares soou como mais um embuste para encobrir as causas e os efeitos do massacre dos negros, aliado à perenização das desigualdades econômicas, políticas e sociais. Uma faixa, na estátua de Zumbi, no alto da Serra da Barriga, demonstra a traição da história: “Aqui repousa um grande herói do passado”.

Ora, Zumbi é um herói do passado, mas, sobretudo, do presente. Zumbi é o assalariado, o favelado, os humilhados e ofendidos, os sem-eira-nem-beira, os deserdados do Brasil que só existe nas estatísticas da prosperidade. Zumbi somos todos nós, anônimos, nos mocambos do vasto quilombo Brasil.
“Ninguém quer esta vida assim não, Zambi” (Martinho da Vila).

14 de novembro de 2009

Meus poemas

O mundo impossível dos meninos

Iremar Marinho

“Ó terra em que nasci e morri,
o seu Mundaú, suas lagoas,
minha mocidade.”

(Jorge de Lima)

Poeta Jorge de Lima,
universal e tão próximo.
Na invenção da infância,
criamos o mesmo mundo
impossível dos meninos.

Nós percorremos a mesma
Cidade da Madalena
(ex-Vila da Imperatriz),
o nosso burgo natal):

Rua da Apertada Hora,
Rua do Jatobazinho;
a Rua da Cachoeira,
a Rua do Virador,

Rua da Matança Velha,
Rua do Boi, do Carvão,
Rego da Guida, Pedreiras,
Rua do Consome Homem.

Sou da Rua do Cangote.
És do Largo da Matriz
(da esquina do Comércio,
olhando a Rua de Cima).

Nós passeamos a esmo
pelos “caminhos que ainda
têm orvalhos e sonâmbulos
bacuraus”, “ninhos suspensos”.

Vagueamos no Cruzeiro
do Século, no Jatobá,
no Sueca, no Bolão,
Tobiba, Terra-Cavada,

lá no Fundo do Surrão,
Brejo do Capim, Muquém,
no Cafuxi, Amolar,
no Caboje, na Jurema,

Várzea Grande, Mão Direita,
Cana Brava, Sapucaia,
no Caípe, no Mocambo,
no Ximenes, no Cajá,

no Riachão, nos Esconsos,
Serra Grande das Canoas,
Serras do Frio, da Laje,
da Barriga (do Quilombo).

Tomamos banho no mesmo
Mundaú, das “lavadeiras
seminuas “, curiosos
de ver aquelas “mocinhas
nuinhas, de pé... com frio...”

Na mesma feira de sábado
(eu me perdi do meu pai),
fostes guia da menina
cega que pedia esmolas.

Na estrada Great Western
(“balduínas sonolentas”),
os meninos de “alma lírica”
aprenderam ver paisagem.

Nossos mundos impossíveis
unem-se pelas lembranças
indeléveis como nódoas
nas almas destes meninos.

Eu te peço por empréstimo
tuas raízes (são nossas)
para deixá-las plantadas
para sempre na União.

Empresta-me teu sublime
Acendedor de Lampiões.
Empresta-me Santa Dica.
Empresta-me Pai João.

Empresta-me Quichimbi.
Empresta-me Janaína.
Tua Mulher Proletária.
Empresta-me Negra Fulô.

Só não tomo por empréstimo
tua grandeza de poeta
universal. Minha dívida
contigo é muito grande.

Dever-te-ei para sempre.

10 de novembro de 2009

Melhores poemas que eu li

Marinha

Arthur Rimbaud

As carroças de prata e de cobre -
As proas de aço e de prata -
Batem a espuma,-
Levantam as cepas das sarças.
As correntes no campo
E os sulcos imensos do refluxo
Soltam-se circularmente rumo ao este,
Rumo aos pilares da floresta,-
Rumo às hastes do quebra-mar,
Cujo ângulo é batido por turbilhões de luz.

Melhores poemas que eu li

As Flores do Mal

Spleen e Ideal

II - O Albatroz

Charles Baudelaire

Às vezes, por folgar, os homens da equipagem
Pegam de um albatroz, enorme ave do mar,
Que segue - companheiro indolente de viagem -
O navio no abismo amargo a deslizar.

E por sobre o convés, mal estendido apenas,
O imperador do azul, canhestro e envergonhado,
Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,
Eis que deixa arrastar como remos ao lado.

O alado viajor tomba como num limbo!
Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava!
Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,
Outro imita a coxear o enfermo que voava!

O Poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra e em meio do escarcéu,
As asas de gigante impedem-no de andar.

27 de outubro de 2009

Poemas de alagoanos

Felicidade

Jorge de Lima

Tão bonita a Lagoa Mundaú!
Eu vi os meninos pobres que iam tirar sururu.
Um bando deles. Uns tinham doze ou treze anos e pareciam ter oito.
Amarelos. Perto da Satuba tem um massapê ótimo.
Eles amassam, amassam, fazem balas.
Cozidas são mais gostosas que sururu.
E quem não sabe comer barro não sabe tirar sururu, com gosto.
Comer terra! Quando a bala vermelhinha cor de telha toca na
língua a boca se enche d’água para a bala se embeber.
Os meninos amarelos têm água por demais na boca.
Gosto de terra não é gosto de comida, de sal, de açúcar, de carne.
É gosto diferente. De terra! É um gosto doente como gosto de maleita.
Também quem não tem maleita não sabe tirar sururu com gosto.
O frio da maleita não se importa com sol nem com chuva
nem com o frio que está por fora da gente, no ar.
É um frio que vem de dentro.
Dá-se a mão e a mão está com 40.
Mas o frio é bom porque é diferente dos outros frios.
Os meninos que vão tirar sururu têm os olhos sumidos.
Mãe-maleita dorme com eles no jirau de pau-cundu.
Mãe-maleita dá-lhes sonhos de febre.
Os meninos sonham coisas doidas.
Que uma inglesinha que passou uma vez
numa lancha-automóvel veio urinar no massapê.
Eles sentem o gosto da inglesinha,
sonhando com o gosto do massapê mijado.
Têm outros sonhos, todos gostosos.
Os meninos tiram sururu com gosto. Ao meio dia o sol tine.
A água está morna e suja.
Ali pertinho já é a lama do sururu. Que gosto pisar na lama!
É diferente de pisar nas praias, na neve, na grama.
Os pés dos meninos têm sensibilidades inéditas.
A lama abarca o pé, entra entre os dedos,
mais grossa do que baba de boi, gruda-se na pele,
dá uma coceira boa nas frieiras.
Os meninos entram mais. A lama sobe.
É uma carícia peganhenta pelo corpo.
As mãos descem na lama. As canoas afundam de sururu.
O sol está tinindo, mas ninguém sente calor.
Tudo é bom. A miséria é boa. A lama é amorosa.
Parece que a vida é uma feitiçaria de sonho de maleita.

Poemas de alagoanos

Chuva e não (II)

Sidney Wanderley

Há dias em que chove poesia.
Dias em que pinga.
Dias em que não.

Cautela para os primeiros.
Atenção para os segundos.
Dos últimos, o áspero
aprendizado do silêncio,
a dura ração da recusa.

Alheios a chuva e poesia,
os dias prosseguirão.

20 de outubro de 2009

Meus poemas

Canto-chão

Iremar Marinho

Desta matéria se faz poesia.
Desta areia, desta maresia
Faz-se o plano do meu canto-chão.

Deste charco forjado de pânico
Brotam seres palavras que são
Pura estesia de mundo botânico.

Desta terra nascem bois alados,
Planta bovina que alimenta arados,
Nesta seara-mundos divididos.

Nesta vala homens são sulcados.
Desta horta são frutos caídos
De suas mesas fartas de ausência.

Meus poemas

Atenção para o poema

Iremar Marinho

Atenção para o poema
sem águas do Ipanema.

Atenção à ladainha
dos hereges de lapinha.

Atenção para o fonema.

Atenção para a lagoa
(a borra da usina escoa)

Atenção para meninas
perdizes (perdidas rimas)

Atenção para Alagoas.

Atenção para a ferrugem
na ponte (no mar, salsugem)

Atenção para emboscada
e “passos no vão da escada”.

Atenção ao véu de nuvem.

Atenção para o fuzil
e à pólvora no barril

Atenção para gaivotas
no rumo de Garça Torta

Atenção para o Brasil.

14 de outubro de 2009

Melhores poemas que eu li

E assim em Nínive

Ezra Pound

“Sim, sou um poeta e sobre a minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

“Vê! Não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou um poeta e sobre a minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

“Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.”


Poética

Manuel Bandeira

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público
com livro de ponto expediente protocolo
e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára
e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula
ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

11 de outubro de 2009

Poesia alagoana

O Mapa

Fernando Fiúza

Há quem perceba no mapa
geográfico de Alagoas
o formato de um revólver.

O lado externo do cabo
é de esmeralda corrente
e um morno colar de areia;

O de dentro, também verde,
de canaviais e mangue,
lagoa, riacho e rio.

O cão seria em Penedo
e a mira na Paulo Afonso
onde Delmiro se fez.

O lado externo do cano
é também feito de água
cansada do São Francisco.

O gatilho mais preciso
presisamente em Palmeira
- ou seria em Quebrangulo?

Searas gracilianas
- agrestes de talo e prego,
rifle, cinema e calor.

Mas não foi arma que vi
no mapa das Alagoas,
foi um alvo negro e úmido.

A virilha da direita
é de esmeralda corrente
e um morno colar de espuma;

Da sinistra sabe o rio
que dá diamba e melão
e na foz fez um deserto.

Sob os pelos afiados
- palha de cana e caatinga
- dorme uma carne macia.

- Pedra mole e massapé –
sangue velho, muita rima,
rendado, ostra e espelho.

Mas a greta é imprecisa:
Paraíba ou Mundaú?
Neste aí Jorge de Lima

na leda da margem porosa
fundou seu mundo de luz
sob as mangueiras em flor.

Poesia alagoana

Sindicato do crime

Maurício de Macedo

A gente não mata por honra.
A gente não mata por Deus.
A gente não mata para roubar.
A gente só mata a soldo,
seja quem for o patrão.

A gente não mata em duelo.
A gente não mata lutando
com faca ou punhal.
A gente só mata de tocaia.
A bala só pega por trás.

A razão do patrão não importa:
disputa política ou terra,
ele não suja as mãos.

E sem razão fica o crime
pela distância que há
entre a mão que puxa o gatilho
e a boca que manda matar,
de modo que a gente pensa
que a gente mata por matar.

7 de outubro de 2009

Meus poemas

Saltimbanco

Iremar Marinho

No burburinho
cada um por si
vai costurando o mundo
que só de contrários se sustém.

Cada um vai fazendo suas contas
somando percalços
deduzindo alegrias
multiplicando desprezos.

No burburinho
cada um esbarra
na porta fechada de si mesmo.

No burburinho
quero passar com meu estandarte
expor estilhaços
calafetar rachaduras.

Estou sangrando
os pés calejados
as feridas expostas.

Aos trapos
minhas fissuras não comovem.

No burburinho
sou só um saltimbanco.

Melhores poemas que eu li - Fragmentos de Altazor

Do Canto II

Vicente Huidobro

Mulher o mundo está mobiliado por teus olhos
Faz-se mais alto o céu em tua presença
A terra se prolonga de rosa em rosa
E o ar se prolonga de paloma em paloma

Ao partires deixas uma estrela em teu lugar

Deixas cair tuas luzes como o barco que passa
Enquanto te segue meu canto enfeitiçado
Como uma serpente fiel e melancólica
E voltas a cabeça por trás de algum astro

Que combate se livra no espaço?

Essas lanças de luz entre planetas
Reflexo de armaduras desapiedadas
Que estrela sanguinária não quer ceder o passo?

Onde estás triste noctâmbula
Doadora de infinito
Que passeias no bosque dos sonhos?

30 de setembro de 2009

Poesia de alagoano - inédita

A Mala

Cicero Melo

Joguei a mala ao mar,
mas o mar me a devolveu.

Joguei-a de novo ao mar,
mas o mar me a devolveu.

Joguei-me com a mala ao mar.

O mar devolveu a mala,
porém não me devolveu.

25 de setembro de 2009

Poesia alagoana

James Joyce

Marcos de Farias Costa

James Joyce carregava Dublin,
como eu carrego Maceió em mim.

Aqui todos os açúcares e areias,
untam Ulysses: episódio das sereias.

A genialidade da alma jesuíta
revém. Genealogia da escripta.

Coisa com coisa — obra em marcha:
o universo lingüístico se encaixa.

Joyce era gamado por música,
I am a polaridade acústica.

Joyce era cego e via Homero.
Sou vários homens e o invero

Vetor da poesia. Ficção?
Fuga per canonem. Canto chão.

Joyce bêbedo puro pornógrafo,
Amante perverlírico polígrafo.

Jewgreek in greekjew. (Bloom,
Yesim, silêncio, sim, Sins, yesnoon.)

Dublar Dublin? Trilagoas, entimemática.
Maceió, Ítaca, Eldorado, Nausicaa.

Tanta sedução doente seja acedia:
Translúcida infinita melodia.

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Heureca

Norton Sarmento Filho

Descobri nesta besta cidade apática
A forma ideal de mentir a vida
A máscara exata para a farsa de viver
O elixir da longa desgraça humana.

Descobri nesta besta cidade apátrida
Seres ex-humanos rastejando de fome
Turbilhões de crianças com ventres inchados
E ratos pedindo esmolas em pleno dia

Descobri, afinal, o mal desta parva cidade:
Tem tudo – mas falta tudo
Tem povo – mas falta democracia
Tem Semana Santa - mas falta santidade!

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Poema nº 28

Arriete Vilela

Os meninos de rua
Parecem pardais urbanos:

em ligeiros vôos
acham-se em toda parte,
aproveitam restos de toda sorte.

Tropical
é algazarra de suas vozes,
quando se ajuntam;

seus gestos e jeitos,
de uma graça desavisada,
assustam e comovem.

Atentíssimo dever ser
o anjo da guarda dos meninos de rua,
esses tantos pardais urbanos.

19 de setembro de 2009

Meus poemas - Concerto para flauta-vértebra

Iremar Marinho

Em vez de poeta, sou
o homem do megafone.
Com a palavra no trombone,
anuncio, à luz do dia,
toda tessitura lírica,
todo poema do mundo
para ruir num instante.

Se eu me chamasse Raimundo,
se eu conhecesse Drummond,
se eu visse Pedro Nava,
ruiria num segundo
todo edifício de ossos,
toda escultura-palavra.

Se fosse eu Mayakovski,
seguraria o gatilho
da palavra invertebrada
da revolução vencida
por um tiro atrás da porta.

Todo poema do mundo,
toda construção-palavra
ruindo por um instante,
no lampejo do estampido,
num sopro da flauta-vértebra.

(A mais-valia da bala,
o mundo em desabalada,
uma balada de outubro,
um tiro no dia rubro
ruiu a farsa delírica
da revolução-malogro).

Eu não me chamo Raimundo,
nem Drummond nem Pedro Nava,
só choro às margens do Neva
junto aos mortos de Akhmátova.


(26 de abril de 2009)

Meus poemas - No Mar de Cuba

Iremar Marinho

Para Freitas Neto, jornalista alagoano solidário, morto em acidente aéreo

Restos do naufrágio
são rosas partidas nas ondas,
grinaldas dos afogados
no líquido túmulo
dos sonhos afogados,
da vida arrebatada.

Que barco fantasma pode salvar
a náufraga solidariedade,
o vôo interceptado?

Que ilha posso alcançar,
como gaivota ferida?

Só um cachorro do mar
vela os líquidos túmulos no Caribe,
com vagidos uivos latidos.
Sou eu só.

(18/7/97)

14 de setembro de 2009

Melhores poemas que eu li - Os homens ocos

T.S. Eliot

"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)


Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.
II
Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.
Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo
- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular
III
Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.
E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.
IV
Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos
Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio
Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.
V
Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada
Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa
Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.


(Tradução: Ivan Junqueira)

11 de setembro de 2009

Poesia alagoana - Minha Pátria

Ledo Ivo

Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando
os meus pés quando sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos
no forro das igrejas carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício
junto ao mar, e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos e os cemitérios marinhos
onde os meus ancestrais tuberculosos
e impaludados não param de tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre
a minha grande e pobre pátria muda,
minha pátria disentérica e desdentada,
sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.

9 de setembro de 2009

Poesia alagoana - Planta de Maceió

Ledo Ivo

O vento do mar rói as casas e os homens.
Do nascimento à morte, os que moram aqui
andam sempre cobertos por leve mortalha
de mormaço e salsugem. Os dentes do mar
mordem, dia e noite, os que não procuram
esconder-se no ventre dos navios
e se deixam sugar por um sol de areia.
Penetrada nas pedras, a maresia
cresta o pelo dos ratos perdulários
que, nos esgotos, ouvem o vômito escuro
do oceano esvaído em bolsões de mangue
e sonham os celeiros dos porões dos cargueiros.
Foi aqui que nasci, onde a luz do farol
cega a noite dos homens e desbota as corujas.
A ventania lambe as dragas podres,
entra pelas persianas das casas sufocadas
e escalavra as dunas mortuárias
onde os beiços dos mortos bebem o mar.
Mesmo os que se amam nesta terra de ódios
são sempre separados pela brisa
que semeia a insônia nas lacraias
e adultera a fretagem dos navios.
Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue
como a lama no fundo da noite lacustre.
E por mais que me afaste, estarei sempre aqui
e serei este vento e a luz do farol,
e minha morte vive na cioba encurralada.

4 de setembro de 2009

Meus poemas - Funeral coletivo na guerra espanhola

Iremar Marinho

Cadáveres de poetas
não servem para heroísmo.
Enterrem logo seus corpos.
Que suas algaravias
não rendam parcos discursos.

Cadáveres de poetas!
Sumam com eles das lápides!
Nem decompondo eles cessam
de comandar as trincheiras
na guerra contra os fascistas.

Cadáveres de poetas
ocupam largos espaços
das terras que se definham.
São feitos para o porvir
(seus ecos roucos retumbam).

Sua atemporal estética
são liames encarnados.
Descarnem logo seus corpos
para que não regorgeiem.
Que não vejam o Paraíso.

não haverá paraíso
nem amores desfolhados


Poetas vivos empestam
o ar da Espanha com versos,
corrompem o ar com silepses,
anástrofes, desestrofes,
com redondilhas sinistras.

Candentes hordas de arqueiros
(traças infra-racionais),
com licenças e silêncios
(com licenciosidades)
esperam coser o mundo.

Seus fantasmas insurgentes,
com armadilhas de rimas
(seus ritmares possessos),
são perigosos, conspiram
contra o ódio dos tiranos.

Seus estribilhos retornam,
suas canções todos solam,
seus ditirambos deliram,
por Baco se embriagam,
por musas se desvanecem.

São fortes contra o Tirano
(contra os cães no pedestal).
Só não resistem aos fuzis
dos criminosos fascistas
(a estese de facínoras).

Aterrem logo estes versos!
Poetas não deixem rastros!
Poemas não subsistam
sob a estese dos fuzis
do Tirano-General!

Não dobrem pelos defuntos.
Apressem seu desencanto,
na terra que vai sorvê-los.
Que jazam definitivos
no calcanhar dos tiranos.

Não esperem Federico
Garcia y bandarilleros,
que eles não voltarão.
Luminares de poetas,
seus rastros são luminosos.


Neste momento dramático
do mundo, o artista deve
chorar e rir com o seu povo.

1 de setembro de 2009

Melhores poemas que eu li - Espiritualidade

Walt Whitmann

Quero fazer os poemas das coisas materiais,
Pois imagino que esses hão de ser
Os poemas mais espirituais.

E farei os poemas do meu corpo
E do que há de mortal.
Pois acredito que eles me trarão
Os poemas da alma e da imortalidade.

E à raça humana eu digo:
-Não seja curioso a respeito de Deus,
Pois eu sou curioso sobre todas as coisas
E não sou curioso a respeito de Deus.

Não há palavra capaz de dizer
Quanto eu me sinto em paz
Perante Deus e a morte.
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda
Nem um pouquinho...

Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa demais?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres...
Cada momento de luz ou de treva
É para mim um milagre,
Milagre cada polegada cúbica de espaço,
Cada metro quadrado de superfície
Da terra está cheio de milagres
E cada pedaço do seu interior
Está apinhado de milagres.

O mar é para mim um milagre sem fim:
Os peixes nadando, as pedras,
O movimento das ondas,
Os navios que vão com homens dentro
- Existirão milagres mais estranhos?


Poeta norte-americano (morreu em 1892, em Camden, Estado de New Jersey)

29 de agosto de 2009

Meus poemas - O mundo impossível dos meninos

Iremar Marinho

“Ó terra em que nasci e morri,
o seu Mundaú, suas lagoas,
minha mocidade.”

(Jorge de Lima)

Poeta Jorge de Lima,
universal e tão próximo.
Na invenção da infância,
criamos o mesmo mundo
impossível dos meninos.

Nós percorremos a mesma
Cidade da Madalena
(ex-Vila da Imperatriz),
o nosso burgo natal):

Rua da Apertada Hora,
Rua do Jatobazinho;
a Rua da Cachoeira,
a Rua do Virador,

Rua da Matança Velha,
Rua do Boi, do Carvão,
Rego da Guida, Pedreiras,
Rua do Consome Homem.

Sou da Rua do Cangote.
És do Largo da Matriz
(da esquina do Comércio,
olhando a Rua de Cima).

Nós passeamos a esmo
pelos “caminhos que ainda
têm orvalhos e sonâmbulos
bacuraus”, “ninhos suspensos”.

Vagueamos no Cruzeiro
do Século, no Jatobá,
no Sueca, no Bolão,
Tobiba, Terra-Cavada,

lá no Fundo do Surrão,
Brejo do Capim, Muquém,
no Cafuxi, Amolar,
no Caboje, na Jurema,

Várzea Grande, Mão Direita,
Cana Brava, Sapucaia,
no Caípe, no Mocambo,
no Ximenes, no Cajá,

no Riachão, nos Esconsos,
Serra Grande das Canoas,
Serras do Frio, da Laje,
da Barriga (do Quilombo).

Tomamos banho no mesmo
Mundaú, das “lavadeiras
seminuas “, curiosos
de ver aquelas “mocinhas
nuinhas, de pé... com frio...”

Na mesma feira de sábado
(eu me perdi do meu pai),
fostes guia da menina
cega que pedia esmolas.

Na estrada Great Western
(“balduínas sonolentas”),
os meninos de “alma lírica”
aprenderam ver paisagem.

Nossos mundos impossíveis
unem-se pelas lembranças
indeléveis como nódoas
nas almas destes meninos.

Eu te peço por empréstimo
tuas raízes (são nossas)
para deixá-las plantadas
para sempre na União.

Empresta-me teu sublime
Acendedor de Lampiões.
Empresta-me Santa Dica.
Empresta-me Pai João.

Empresta-me Quichimbi.
Empresta-me Janaína.
Tua Mulher Proletária.
Empresta-me Negra Fulô.

Só não tomo por empréstimo
tua grandeza de poeta
universal. Minha dívida
contigo é muito grande.

Dever-te-ei para sempre.

27 de agosto de 2009

Melhores poemas que eu li - O Mal

Arthur Rimbaud

Enquanto o cuspe vermelho da mitralha
Assobia todo o dia no infinito do céu azul;
Que rubros ou verdes, perto do Rei que ralha
Caem os batalhões em massa na batalha;

Enquanto uma loucura terrível esmaga
E faz de cem mil homens uma chaga;
— Pobres mortos! No verão, na grama, na tua felicidade,
Natureza! Ó tu que fizeste estes homens com santidade!...

— Existe um Deus que ri nos bordados
Dos altares, no incenso, nos grandes cálices dourados;
Que embalado pelos aleluias adormece,

E acorda quando mães entregues ao pé
Da angústia, chorando sob um velho boné
Dão-lhe uma grande moeda como benesse!

26 de agosto de 2009

Poesia alagoana - As Aparições

Jorge de Lima

Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.

A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.

Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.

O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.

Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?

Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.

E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.

Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.

Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.


(Invenção de Orfeu/Canto IV)

20 de agosto de 2009

Poesia alagoana - Triste Bothanique

José Geraldo Marques

O que em Alagoas remanesce
da floresta tropical
há uma voz que farfalha
pois é carnívora essa flor
que por dentes tem punhal
seus desejos são lupinos
e ferino seu arsenal
ai, "fina flor da canalha"
que devora quem trabalha
e destila o mel do mal
tua grandeza é pequenina
pois teu adubo é a hemoglobina
do jornaleiro braçal
cortar o mal pela raiz
ou a raiz pelo mal?
quem não tem medo desse bicho
desse bicho folharal?
que tira fótons das trevas
desde o tempo do marechal?
ai, "fina flor da canalha"
deixai um rabo-de-palha
na assembleia das gralhas
abrir asas sobre vós
e entre abutres, metralhas
iguanas, surucucus
misturai a vossa voz
ao crocitar dos urubus
ai, triste estado que cumpre
o seu fado de naufrágio
em um mar de canavial
onde as usinas têm nomes doces
e os donos têm bala e sal:
essa sua geografia é da fome
a sua biologia não come
e sua história é canibal
ai, "fina flor da canalha"
para cumprir teu fadário
nesta hora terminal
invoco é uma rasga-mortalha
para cortar o sudário
do teu destino letal
vade retro flor-canalha!
vade retro flor-chacal!
eu te esconjuro flor-navalha!
eu te esconjuro flor-do-mal
!

In Dialética, ano 7. no 5. Maceió,
Ed. Linear B, março de 2001, p. 103.

27 de julho de 2009

Meus poemas - Novíssimas Cartas Chilenas *

Iremar Marinho

Para Tomás Antônio Gonzaga e José Paulo Paes

No Pacífico chileno, lembro-me
e velejo naus que me guiam
a Pindorama vista desde as caravelas.

Eu era um rosto na armada
(Cabral não sabia
que as Índias de Pindorama
tinham a minha cara).

A Nau Capitânia vai
descobrir o que existe
(Europasiáfrica está nas cartas).

Outro mundo descobri,
quando Pindorama me resgatou
(não estava no Gênesis e no Corão).

Disperso-me? São os ventos do oeste.

Eu não estava no mapa
nem na capa das Metamorfoses.
Ovídio me ignorou e Pérdix,
quando me viu, não cantou
para mostrar sua alegria.

Os canaviais que ainda vão crescer
esmagam a minha esperança
de salvar as matas de Jatiúca.

Agora, sob as estrelas de Cão,
a calmaria me conduz
ao cabeço da praia (terra à vista).

Meu sangue diz que em Pindorama
ferve o mesmo sangue meu
de antigas guerras e degredos.

Na Serra da Naceia
(o porto depois da calmaria),
meu rosto ficou, quando a armada
singrou a rota tupiniquim.

Entre os Caetés, não vislumbro
a destruição que ainda alcançaria,
com os moinhos da Holanda,
a barriga negra engravidada
pelo discurso de Platão.

(Tupã, deus como Júpiter,
não está na mitologia)

Netuno e Minerva não sabem
de Jaci e de Coaraci
nem da mitologia de Zâmbi
que Jorge de Lima arremessa
dos ancoradouros do Muquém e do Amolar.

Ovídio não saberia (nem Prometeu)
que Pindorama criaria outra mitologia
(o Mundaú, de olho cego,
não é o mais limpo dos rios).

O Paraíba do Meio, com olho cego
de Manguaba, não tem,
como o Paraibuna, a reverência
de Murilo Mendes ao Guadalete.

(Disperso-me nas calmarias)

Cabral não sabe que as Índias
estão na minha tribo Caeté,
e começaria ali a destruição
das crenças mitológicas.

Ovídio Nasão nem desconfia
(“tudo o que escrevia era verso”).
O libertino assoma ao Fórum,
mas seus dotes de advogado
não servem para defender
meus Caetés do holocausto.

Pindorama (pé-de-página da carta de navegação)
é anotação aleatória na viagem da armada ao Oriente.

O Cabo das Tormentas (Cabo Não
de todos os transes) preocupa
mais que as perdidas perdizes
(as minhas naus desgarradas).

Cabral quer o Oriente longínquo
(está no mapa, não há dúvidas),
mas não transpõe as tormentas.

As caravelas desabam
em Pindorama das Índias.

Eu alcançaria o Oriente,
se minha nau dispersa rompesse
a calmaria dos abrolhos de Jatiúca.

Agora em Santiago (18 de março de 2000),
minha carta começa e não terá fim.

A vida cumpre a metamorfose mítica
de Públio Ovídio Nasão.
Prometeu leva, pela 2.001ª vez,
sua pedra morro acima.

*Publicado na seção Mural de Poemas do jornal Extra Alagoas (nº 240), de 5 de outubro de 2003

14 de julho de 2009

Definições para Bestiário

Enciclopédia Itaú Cultural

Em sentido mais estrito, o termo bestiário (do latim bestia, "animal") faz referência a um gênero literário medieval, que se vale da descrição física e de comportamentos de animais, reais ou fantásticos, para a construção de fábulas de caráter moralizante. Em prosa ou verso, esses manuscritos ilustrados tomam a natureza como fonte de ensinamentos úteis ao homem e à sociedade, com uma visão cristã do mundo. A cultura medieval está repleta de animais, em textos e imagens, rituais, folclore, heráldica, canções, provérbios etc. Em geral, esses seres são representados por meio de duas visões distintas: uma mais corrente considera o animal imperfeito e inferior e, nesse sentido, radicalmente diferente do homem; outra, ao contrário, subentende a existência de uma comunidade de seres vivos e um parentesco - não apenas biológico - entre homens e animais. Repletos de sentidos negativos e positivos, representados muitas vezes de forma alegórica e grotesca, o fato é que os animais ocupam o primeiro plano no imaginário medieval cristão: dragões, crocodilos, leões, asnos, porcos, baleias, unicórnios, aves e peixes simbolizam o mal, a imortalidade, a astúcia, o poder etc., de acordo com os atributos de cada um deles.