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1 de maio de 2017

Poema de Cicero Melo

(Hoje choveu, mas não esteve triste)


Cicero Melo


Hoje choveu, mas não esteve triste.
Olhava a rua assassinada e suja.
Lembrava-lhe o menino que resiste
Em não crescer no tempo que enferruja.
Lembrava-lhe o menino prematuro
Que ante o caule do tempo tão interno,
Brincava de marinho atrás do muro:
Um mundo desenhado no caderno.
Desenhara, entretanto, bons navios,
Tecidos de papel e mente afora,
Se compondo de chuvas e de rios.
Hoje choveu, mas não esteve triste.
Cresceu dentro de si um deus que chora,
E o seu barco levou tudo que existe.
Levou primeiro o pai que nunca o vira,
E depois sua mãe que sempre amara.
O irmão que tinha deus assassinara
Com as mãos do outro irmão; o mundo gira
Perdido no seu eixo, agora a chuva
Está matando a terra e seu rebento.
Águas sobem além do firmamento.
O barco de papel à mão segura
Conduz para o seu grande coração
Todos os sem pecados e animais
Marcados pelos deuses, com sinais,
E daqueles caídos em danação.
E daqueles queimando os seus cabelos,
E daqueles rasgando o peito em vão,
E daqueles perdidos em pesadelos,
E daqueles comendo o coração,
E daqueles sedentos de serpente,
E daqueles danados sem paixão,
E daqueles perdidos na semente,
E daqueles comendo a própria mão,
E daqueles morrendo à mão mesquinha,
E daqueles com dedo sempre em riste,
E daqueles que a fome desalinha,
E a saída, parece, nunca existe.
E o barco de papel vai navegando.
Como brincar num mundo se afogando?

(Cicero Melo, in O POEMA DA DANAÇÃO, Ed. Bagaço, 2006)