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2 de abril de 2017

Melhores poemas que eu li


Noturno do Paraná do Ramos

Thiago de Mello


Antes do mais, viva a vida,
que livre e larga nos seja.
Do ferrão turvo da morte,
afinal sobrevivemos.

É verdade que nem todos.
Ninguém sabe quantos são
os nossos mortos. Talvez
jamais se possa contá-los.
De tantos sequer sabemos
o paradeiro da morte:
são os desaparecidos,
nomes de lista sinistra,
é tudo que nos permitem.

Todos findaram sabendo
que estavam no bom combate.
Alguns morreram gritando
o nome da liberdade.
De cada um de nós depende
que não tenha sido em vão.
Com sua morte, já fazem
parte da vida que um dia
vai florescer neste chão.

Sobrevivos. Mas não completamente.
Um pouco também morremos com eles.
Já não somos os mesmos. Todavia
agora muito mais somos quem somos,
porque a saber de trevas aprendemos
a nos olhar a face e atrás da face.
Encardidos de ciência, resguardamos
o límpido poder do coração.
Cambaio, o nosso andar agora sabe
sentir melhor o sonho e a dor do chão.
Noturnos, mas levando a claridão.

É verdade que as mãos ainda se acanham,
temerosas de gesto solidário.
Nossa ternura, antes canção de relva
orvalhada, estremece agora tímida,
pela pele resvala protegida
de cinza e indiferença.
Já nem sabemos mais olhar fronteiros,
e a vontade de ver, quando já perto,
se vai mudando em medo de enxergar.
O hábito, a que os tempos de temor
nos obrigaram, ainda não perdemos
de esconder o perfil, o canto do olho
espreitando os morcegos escondidos.
Ração de fel diária, a desconfiança
ainda aparece, mais que em nosso prato,
dentro da própria fome, disfarçada
na pressa de engolir, do compromisso
inventado, caminho para a fuga
do simples e fraterno conviver.

Para quem não viveu, convém contar.
A quem já se esqueceu, quero lembrar.
Era um tempo em que o clamor
dos oprimidos se erguia
no duro dizer das dores
em plena praça. Era um tempo
em que a esperança orvalhava
o sonho dos humilhados
e soterradas estrelas
surgiam rasgando rumos
nas consciências amassadas.
Lavradores descobriam
um poder novo nas mãos:
o de arrancar madrugadas
das escurezas do chão.
Contracantos vigilantes
os violões de rua anunciavam
as cores de uma aurora diferente.

Não haverá chegado esse clamor
aos ouvidos do Senhor dos Exércitos,
abafado talvez pelos rosários
dos que do Cristo fazem escudo do ódio.
Ousado foi bastante e cristalino
para, látego justo, amedrontar
os senhores de exércitos, ferir
conquanto levemente e com palavras
a pele dos mais podres privilégios.

Foi quando a grande besta levantou-se
com os números da traição na testa
e na fronte do povo derramou
o fedor do seu hábito de trevas.
De suas fauces viscosas
escorriam sentenças
(algumas com sotaque inconfundível)
proferidas em nome de Deus
(para que o amor pudesse ser negado)
em nome da Família
(para que as casas se dividissem)
e em nome da Pátria
(para que o país pudesse ser empenhado
e para que fosse vendido o nosso sonho).

Por isso, meu amor, somos quem somos.
Tanto tempo vivemos tão vigiados
pelas pupilas vesgas
dos que têm medo da aurora,
que, aos poucos, começamos a esconder
não a foice do orgulho
que nos cala o cântico no peito,
mas a espada de estrelas
que nos defende a esperança.
Até que um dia anoitecemos nos vigiando
a esmeralda do amor, que só brilhava
nos subúrbios da sombra, entre meninos.

É certo que recuperamos a fala.
Mais ainda não aprendemos a pronunciar
o nome das flores que arrebentam na praça.
Como a palavra cristalina queima,
muitos ainda preferem o aconchego dos enigmas
e sobretudo continuamos a nos ouvir
repetindo os compêndios corroídos
pelas traças inexoráveis dos erros.

Recuperamos a fala.
Mas as palavras de brasa,
as terríveis palavras perseguidas,
pelas quais nos amarraram a boca,
hoje entram em todas as casas,
proferidas a cores,
pelos antigos mordaceiros da luz,
mas lavadas por dentro,
esvaziadas de tudo o que nelas
era poder de pássaro e canção.

De mãos encardidas,
de olhos manchados,
sobrevivemos.
Resguardamos o rumo e a esperança.
No caminho do amor ninguém se cansa,
porque se aprende a olhar de frente o sol.

                              Subindo o Paraná do Ramos, 
                              primavera de 1980.