Um monstro flui nesse poema
Jorge de Lima
Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.
A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.
Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.
Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?
Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.
E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.
Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.
feito de úmido sal-gema.
A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.
Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.
Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?
Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.
E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.
Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.
(Invenção
de Orfeu, Canto Quarto, Poema I)
Este poema de amor não é lamento
Jorge de Lima
Este poema de amor não é
lamento
Nem tristeza distante, nem saudade,
Nem queixume traído nem o lento
Perpassar da paixão ou pranto que há de
Nem tristeza distante, nem saudade,
Nem queixume traído nem o lento
Perpassar da paixão ou pranto que há de
Transformar-se em dorido
pensamento,
Em tortura querida ou em piedade
Ou simplesmente em mito, doce invento,
E exalta visão da adversidade.
Em tortura querida ou em piedade
Ou simplesmente em mito, doce invento,
E exalta visão da adversidade.
É a memória ondulante da mais
pura
E doce face (intérmina e tranquila)
Da eterna bem-amada que eu procuro;
E doce face (intérmina e tranquila)
Da eterna bem-amada que eu procuro;
Mas tão real, tão presente
criatura
Que é preciso não vê-la nem possuí-la
Mas procurá-la nesse vale obscuro.
Que é preciso não vê-la nem possuí-la
Mas procurá-la nesse vale obscuro.
Vereis que o poema cresce independente
Jorge de Lima
Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...
Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...
Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
(De Livro
de Sonetos - 1949)
O cavalo em chamas
Jorge de Lima
Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.
Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.
Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.
Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.
Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.
Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.
Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.
Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.
Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.
Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.
(Invenção de Orfeu,
Canto Quarto, poemas II e IV)
pretty nice blog, following :)
ResponderExcluirfollowing :) Thanks
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