Cantigas das mães
Jacinta Passos
(para minha mãe)
Fruto quando
amadurece
cai das
árvores no chão,
e filho
depois que cresce
não é mais
da gente, não.
Eu tive
cinco filhinhos
e hoje
sozinha estou.
Não foi a
morte, não foi,
oi!
foi a vida
que roubou.
Tão lindos,
tão pequeninos,
como
cresceram depressa,
antes
ficassem meninos
os filhos do
sangue meu,
que meu
ventre concebeu,
que meu
leite alimentou.
Não foi a
morte, não foi,
oi!
foi a vida
que roubou.
Muitas vidas
a mãe vive.
Os cinco
filhos que tive
por cinco
multiplicaram
minha dor,
minha alegria.
Viver de
novo eu queria
pois já hoje
mãe não sou.
Não foi a
morte, não foi,
oi!
foi a vida
que roubou.
Foram viver
seus destinos,
sempre,
sempre foi assim.
Filhos
juntinhos de mim,
Berço, riso,
coisas puras,
briga,
estudos, travessuras,
tudo isso já
passou.
Não foi a
morte, não foi,
oi!
foi a vida
que roubou.
Do livro Nossos poemas, Salvador: A
Editora Bahiana, 1942
Canção da alegria
Jacinta Passos
Urupemba
urupemba
mandioca
aipim!
peneirar
peneirou
que restou
no fim?
Peneira
massa peneira,
peneira
peneiradinha,
(Ai! vida
tão peneirada)
peneira
nossa farinha.
Olhe o rombo
olhe o rombo
olhe o rombo
arrombou!
olhe o cisco
olhe o risco
urupemba
furou!
Eh! sai
espantalho
da ponta do
galho!
Escorra!
Escorra!
Tirai essa
borra!
Urupemba
urupemba
mandioca
aipim!
peneirar
peneirou
que restou
no fim?
Farinha
fininha
peneiradinha!
Ai! vida,
que vida
nuinha!
nuinha!
Diálogo na sombra
Jacinta Passos
– Que
dissestes, meu bem?
Esse gosto.
Donde será
que ele vem?
Corpo
mortal.
Águas
marinhas.
Virá da
morte ou do sal?
Esses dois
que moram no fundo e no fim.
– De quem
falas amor, do mar ou de mim?
Do livro Canção da partida, S. Paulo,
Edições Gaveta, 1945
Canção atual
Jacinta Passos
Plantei meus
pés foi aqui
amor, neste
chão.
Não quero a
rosa do tempo
aberta
nem o cavalo
de nuvem
não quero
as tranças
de Julieta.
Este chão já
comeu coisa
tanta que eu
mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça
de rei.
Muita cidade
madura
e muito
livro da lei.
Quanto deus
caiu do céu
tanto riso
neste chão,
fala de
servo calado
pisado
soluço de
multidão.
Coisas de
nome trocado
– fome e
guerra, amor e medo –
Tanta dor de
solidão.
Muito
segredo guardado
aqui dentro
deste chão.
Coisa até
que ninguém viu
ai! tanta
ruminação
quanto
sangue derramado
vai
crescendo deste chão.
Não quero a
sina de Deus
nem a que
trago na mão.
Plantei meus
pés foi aqui
amor, neste
chão.
Canção do amor livre
Jacinta Passos
Se me
quiseres amar
não despe
somente a roupa.
Eu digo:
também a crosta
feita de
escamas de pedra
e limo
dentro de ti,
pelo sangue
recebida
tecida
de medo e
ganância má.
Ar de
pântano diário
nos pulmões.
Raiz de
gestos legais
e limbo do
homem só
numa ilha.
Eu digo:
também a crosta
essa que a
classe gerou
vil,
tirânica, escamenta.
Se me
quiseres amar.
Agora teu
corpo é fruto.
Peixe e
pássaro, cabelos
de fogo e
cobre. Madeira
e água
deslizante, fuga
ai rija
cintura de
potro bravo.
Teu corpo.
Relâmpago
depois repouso
sem memória,
noturno.
O rio
Jacinta Passos
Tantos rios
como eu abriram leito de pedras
e pranto. Um
dia perguntávamos:
– Dizei-me,
curva, onde vou? casa trono rocha sois
aqueles que
ficam, minha lei é não parar. Sigo
fio de água,
água humilde sou, para onde? Ó curva,
falai. Água
de revolta, espuma e ódio nos poros
na garganta
no útero, pranto de mulher, água
de fel
antigo, quem é meu semelhante? Dizei, onde vou?
Leito de
pedras e pranto. Súbito, próximo,
Atravessou,
olhai, ele!
ali na
frente, vivo, tão vivo,
ele sim! o
rio das águas inúmeras. Correi
doçuras e
dores, punhos, Partido, esperança nossa…
1935
Jacinta Passos
Tenso como
rede de nervos
pressentindo
ah! novembro
de esperança
e precipício.
Fruto peco.
Novembro de
sangue e de heróis.
Grito de
assombro morto na garganta,
soluço seco
dor sem nome. Ferido.
De morte
ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas
e dentes. Natal.
Sangue.
Praia Vermelha.
Sangue.
Sangue. É
quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro
dos cárceres,
nas ilhas
e nos
corações que a esperança guardaram.
Do livro Poemas políticos, Rio de
Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951
Uma vida tumultuada - Biografia
A baiana Jacinta Passos nasceu em Cruz das Almas, na região do Recôncavo da Bahia, em 1914, filha de Berila Eloy e Manuel Caetano da Rocha Passos, pertencentes a famílias tradicionais da região, muito católicas. Seu avô paterno, Themístocles da Rocha Passos, duas vezes Senador na Província (depois Estado) da Bahia, é hoje nome da principal praça da cidade. Seu pai, também político, foi eleito deputado estadual quatro vezes, as duas últimas pela UDN.
Jacinta passou a infância entre o núcleo urbano de Cruz das Almas e a fazenda Campo Limpo, de propriedade do pai, onde nascera e morava com a família, mergulhada na cultura do fumo, das tradições africanas e das canções infantis que marcariam sua poesia. Após a transferência da família para Salvador, cursou a Escola Normal, onde se formou com láurea. Trabalhou como professora de matemática, dando aulas particulares e, depois, na prestigiosa Escola Normal onde se formara. Nessa época, era muito religiosa. Praticava a religião com uma entrega total, dedicando-se com fervor e buscando uma união profunda e direta com Deus.
Desde o final da década de 1920 escrevia poemas, em geral de conteúdo religioso. Nos anos 30, ao lado do irmão, o estudante de medicina e também poeta Manoel Caetano Filho, participou de círculos e grupos literários de Salvador, como a Ala das Letras e das Artes (ALA), chefiada pelo crítico Carlos Chiacchio. Seus poemas começaram a circular entre os intelectuais da cidade. Continuava religiosa, mas, à medida que o tempo passava, sua religiosidade ia adquirindo conteúdo social e militante.
A partir da eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, envolveu-se fortemente com política. Ao lado do irmão, assumiu posições públicas e participou de movimentos a favor da paz mundial e do final da ditadura do Estado Novo. Denunciou as opressões que pesavam sobre as mulheres, defendendo mudanças imediatas na condição feminina. Continuava católica, porém cada vez mais afastada das posições ortodoxas da Igreja.
Após a entrada do Brasil na guerra, em 1942, participou intensamente da luta antinazista e antifascista, envolvendo-se com grupos de esquerda. Tornou-se também uma ativa jornalista, escrevendo sobre temáticas sobretudo sociais. Foi uma das poucas mulheres da Bahia, à época, a assumir posições políticas públicas e a desenvolver uma intensa e regular atividade jornalística, publicando artigos e poesias no jornal O Imparcial e na revista cultural Seiva. Publicou semanalmente em O Imparcial uma “Página Feminina”, que ampliava muito os assuntos habitualmente reservados às mulheres, introduzindo discussões políticas e literárias.
Jacinta alargou seus contatos literários, dedicando-se com afinco à poesia. Em 1942, publicou o livro Nossos poemas (Salvador, A Editora Bahiana), cuja primeira parte, "Momentos de Poesia", contém poemas seus, enquanto a segunda, "Mundo em Agonia", reúne poemas do irmão, Manoel Caetano Filho. O volume mereceu boas críticas na imprensa, firmando os nomes dos dois poetas no meio intelectual baiano.
Jacinta Passos tornou-se amiga de intelectuais comunistas, como Jorge Amado, que no final de 1942 retornara à Bahia, aprofundando a participação em movimentos sociais e feministas. Nessa época, abandonou o catolicismo.
Mudou-se em 1944 para São Paulo, onde se casou com o jornalista e escritor James Amado. No ano seguinte, publicou seu segundo livro, Canção da Partida (São Paulo, Edições Gaveta), contendo dezoito poemas, três transcritos do livro anterior. A edição, extremamente bem cuidada, foi de apenas duzentos exemplares, numerados e assinados pela autora e ilustrados pelo grande artista Lasar Segall. Canção da Partida recebeu críticas muito elogiosas de intelectuais expressivos como Aníbal Machado, Antonio Candido, Gabriela Mistral, José Geraldo Vieira, Mário de Andrade, Roger Bastide e Sérgio Milliet, firmando o nome da poeta no cenário nacional.
Jacinta Passos continuou fortemente envolvida com política. Lutou pelo final da guerra, pela redemocratização do Brasil, pela liberdade de expressão, pela anistia aos presos políticos e pela ampliação dos direitos das mulheres. Em 1945, ano em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi legalizado e lançou uma grande campanha de filiação de novos membros, ingressou oficialmente nesse partido, nele permanecendo até morrer.
De volta a Salvador, foi candidata a deputada federal e a deputada estadual pelo PCB, não se elegendo. Contribuiu para o jornal comunista O Momento e continuou participando ativamente da política. Em 1947, após uma gravidez muito difícil, deu à luz sua filha única. Com o marido e a filha, viveu alguns anos em uma fazenda no sul da Bahia, onde se dedicou à família e à escrita.
Mudou-se em 1951, com a família, para o Rio de Janeiro, onde lançou seu terceiro livro, Poemas políticos (Rio de Janeiro, Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil). Contendo dez poemas inéditos, políticos e líricos, além de uma seleção de poesias anteriores, Poemas políticos ampliou o prestígio da escritora, tornando-a mais conhecida nos círculos literários do Rio de Janeiro, a capital do país.
No final desse ano sofreu grave crise nervosa, com delírios persecutórios. Ficou vários meses internada em sanatórios do Rio, onde foi diagnosticada como portadora de esquizofrenia paranóide, considerada então uma doença progressiva e irrecuperável. Durante essa internação e nas seguintes, foi tratada à base de choques elétricos, injeções de insulina e barbitúricos. Transferida para a Clínica Psiquiátrica Charcot, em São Paulo, teve o diagnóstico confirmado.
Em 1955, separada do marido e da filha, regressou a Salvador, voltando a residir com os pais. Continuou militando no PCB, um partido em crise, ensinou em comunidades pobres de Salvador e publicou artigos sobre literatura no jornal comunista O Momento, onde, durante alguns meses, foi também responsável por uma página literária. Continuou escrevendo poesias. Recebeu a visita da filha durante duas férias escolares e a visitou, no Rio de Janeiro.
Publicou em 1957 seu quarto livro, A Coluna (Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Fº Editor). O volume contém um longo poema épico, de quinze cantos, sobre a Coluna Prestes, marcha de cerca de vinte e cinco mil quilômetros, empreendida na década de 1920, e liderada, entre outros, por Luiz Carlos Prestes, que buscava mudanças políticas profundas para o Brasil. O livro foi bem recebido por críticos como Paulo Dantas. Vários de seus trechos foram transcritos em publicações de esquerda do país, até 1964.
Após permanecer cerca de dois anos na cidade pernambucana de Petrolina, onde vivia sozinha e em extrema pobreza, transferiu-se em 1962 para Aracaju, em Sergipe. Ali morou, também sozinha, em Barra dos Coqueiros, povoação de pescadores situada em frente à cidade. Vivia muito pobremente, em um barraco de madeira, à beira do rio. Possuía uma máquina de escrever, onde, à noite, datilografava poemas e textos políticos, que distribuía pelas ruas durante o dia. Numa época de grande agitação e polarização política, desenvolveu, sozinha e ao lado de integrantes do PCB local, intensa militância junto a pescadores, estudantes e trabalhadores, inclusive após o golpe militar de 1964.
Foi detida em 1965, quando pichava nos muros da cidade palavras de ordem contrárias à ditadura. Recolhida ao 28º BC de Aracaju, graças à interferência da família Passos foi transferida para um sanatório particular da mesma cidade, a Casa de Saúde Santa Maria, onde permaneceu até sua morte, em 28 de fevereiro de 1973, aos cinqüenta e sete anos de idade.
Interessante postagem e de conteúdo importante para enriquecer o conhecimento histórico de nosso país.
ResponderExcluirObrigada.
Um abraço
Agradeço, Guaraciaba, pela sua visita e comentário aos poemas de Jacinta Passos.
ResponderExcluirAbraços.
Parabéns Poeta Iremar Marinho pela postagem recente da Poetisa Jacinta Passos. Tudo isso só vem a confirmar sua sensibilidade poética e a qualidade do seu do blog. Abs
ResponderExcluirAgradeço-lhe por sua gentileza, poeta Ubirajara Almeida, na apreciação dos poemas de Jacinta Passos e do blog. Abraços.
ResponderExcluirIremar, deixei meu comentário de agradecimento aqui, por ter feito esta linda postagem com os poemas de minha mãe, mas, por alguma razão, ele não saiu. Muito obrigada, agradeço-lhe muitíssimo!
ResponderExcluirJanaína, você pode me enviar in-box, pelo Facebook, que eu publico aqui. Sinto-me prestigiado por sua importante visita e comentário no blog. Você não tem o que agradecer, o Bestiário estava devendo essa publicação dos belos versos de Jacinta Passos. Abraços!
ResponderExcluirOlá, Iremar
ResponderExcluirUm post cheio de poesias e cultura...
Abraços fraterno de paz e bem
Olá, Roselia, um comentário cheio de gentilezas suas. Agradeço-lhe pela visita e lhe retribuo os abraços fraternos.
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