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11 de outubro de 2017

Dentro da Noite Veloz


Ferreira Gullar


I - Na quebrada do Yuro 
eram 13,30 horas 
(em São Paulo 
era mais tarde; em Paris anoitecera; 
na Ásia o sono era seda) 
Na quebrada do rio Yuro 
a claridade da hora 
mostrava seu fundo escuro: 
as águas limpas batiam 
sem passado e sem futuro. 
Estalo de mato, pio 
de ave, brisa nas folhas 
era silêncio o barulho 
a paisagem 
(que se move) 
está imóvel, se move 
dentro de si 
(igual que uma máquina de lavar
lavando sob o céu boliviano, a paisagem 
com suas polias e correntes de ar) 
Na quebrada do Yuro 
não era hora nenhuma 
só pedras e águas 

II 
Não era hora nenhuma 
até que um tiro 
explode em pássaros 
e animais até que passos 
vozes na água rosto nas folhas 
peito ofegando a clorofila 
penetra o sangue humano 
e a história se move a paisagem 
como um trem começa a andar 
Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas 

III 
Ernesto Che Guevara 
teu fim está perto 
não basta estar certo 
para vencer a batalha 
Ernesto Che Guevara 
Entrega-te à prisão 
não basta ter razão 
pra não morrer de bala 
Ernesto Che Guevara 
não estejas iludido 
a bala entra em teu corpo 
como em qualquer bandido 
Ernesto Che Guevara 
por que lutas ainda?
a batalha está finda 
antes que o dia acabe 
Ernesto Che Guevara 
é chegada a tua hora 
e o povo ignora 
se por ele lutavas 

IV 
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora 
é mais intenso, o inimigo avança 
e fecha o cerco. 
Os guerrilheiros 
em pequenos grupos divididos 
agüentam a luta, protegem a retirada 
dos companheiros feridos. 
No alto, 
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente 
sobrevoando países 
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul. 
Uma greve em Santiago. Chove 
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol 
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe. 
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima 
de Montevidéu. À beira da estrada 
muge um boi da Swift. A Bolsa 
no Rio fecha em alta ou baixa. 
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato 
castigam o avanço dos rangers . 
Urbano tomba, Eustáquio
Che Guevara sustenta 
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe 
o joelho, no espanto 
os companheiros voltam 
para apanhá-lo. É tarde. Fogem. 
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos. 

V
Não está morto, só ferido 
Num helicóptero iangue 
é levado para Higuera 
onde a morte o espera 
Não morrerá das feridas 
ganhas no combate 
mas de mão assassina 
que o abate 
Não morrerá das feridas 
ganhas no combate 
mas de mão assassina 
que o abate 
Não morrerá das feridas 
ganhas a céu aberto 
mas de um golpe escondido 
ao nascer do dia 
Assim o levam pra morte 
(sujo de terra e de sangue) 
subjugado no bojo 
de um helicóptero ianque 
É seu último vôo 
sobre a América Latina 
sob o fulgir das estrelas 
que nada sabem dos homens 
que nada sabem do sonho, 
da esperança, da alegria, 
da luta surda do homem 
pela flor da cada dia 
É seu último vôo 
sobre a choupana de homens 
que não sabem o que se passa 
naquela noite de outubro 
quem passa sobre seu teto 
dentro daquele barulho 
quem é levado pra morte 
naquela noite noturna 

VI
A noite é mais veloz nos trópicos 
(com seus na vertigem das folhas na explosão 
monturos) das águas sujas 
surdas 
nos pantanais 
é mais veloz sob a pele da treva, na 
conspiração de azuis 
e vermelhos pulsando 
como vaginas frutas bocas 
vegetais (confundidos com sonhos) 
ou um ramo florido feito um relâmpago 
parado sobre uma cisterna d´água 
no escuro 
É mais funda 
a noite no sono 
do homem na sua carne 
de coca e de fome 
e dentro do pote uma caneca 
de lata velha de ervilha 
da Armour Company 
A noite é mais veloz nos trópicos 
com seus monturos 
e cassinos de jogos 
entre as pernas das putas 
o assalto a mão armada 
aberta em sangue a vida. 
É mais veloz (e mais demorada) 
nos cárceres 
a noite latino-americana 
entre interrogatórios 
e torturas (lá fora as violetas) 
e mais violenta (a noite) 
na cona da ditadura 
Sob a pele da treva, os frutos 
crescem 
conspira o açúcar 
(de boca para baixo) debaixo 
das pedras, debaixo 
da palavra escrita no muro 
ABAIX 
e inacabada Ó Tlalhuicole 
as vozes soterradas da platina 
Das plumas que ondularam já não resta 
mais que a lembrança 
no vento 
Mas é o dia (com seus monturos) 
pulsando dentro do chão 
como um pulso 
apesar da South American Gold and Platinum 
é a língua do dia 
no azinhavre 
Golpeábamos en tanto los muros de adobe 
y era nuestra herencia una red de agujeros 
é a língua do homem 
sob a noite 
no leprosário de San Pablo 
nas ruínas de Tiahuanaco 
nas galerias de chumbo e silicose 
da Cerro de Pasço Corporation 
Hemos comido grama salitrosa 
piedras de adobe lagartijas ratones 
tierra en polvo y gusanos 
até que 
(de dentro dos monturos) irrumpa 
com seu bastão turquesa 

VII 
Súbito vimos ao mundo 
E nos chamamos Ernesto 
Súbito vimos ao mundo 
e estamos 
na América Latina 
Mas a vida onde está 
nos perguntamos 
Nas tavernas? 
nas eternas tardes tardas? 
nas favelas 
onde a história fede a merda? 
no cinema? 
na fêmea caverna de sonhos 
e de urina? 
ou na ingrata 
faina do poema? 
(a vida 
que se esvai 
no estuário do Prata) 
Serei cantor 
serei poeta? 
Responde o cobre (da Anaconda Copper): 
Serás assaltante 
E proxeneta 
Policial jagunço alcagueta 
Serei pederasta e homicida? 
serei o viciado? 
Responde o ferro (da Bethlehem Steel): 
Serás ministro de Estado 
e suicida 
Serei dentista 
talvez quem sabe oftalmologista? 
Otorrinolaringologista? 
Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium): 
serás médico aborteiro 
que dá mais dinheiro 
Serei um merda 
quero ser um merda 
Quero de fato viver. 
Mas onde está essa imunda 
vida – mesmo que imunda? 
No hospício? 
num santo 
ofício? 
no orifício da bunda? 
Devo mudar o mundo, 
a República? A vida 
terei de plantá-la 
como um estandarte 
em praça pública? 

VIII 
A vida muda como a cor dos frutos 
lentamente 
e para sempre 
A vida muda como a flor em fruto 
velozmente 
A vida muda como a água em folhas 
o sonho em luz elétrica 
a rosa desembrulha do carbono 
o pássaro da boca 
mas 
quando for tempo 
E é tempo todo o tempo 
mas 
não basta um século para fazer a pétala 
que um só minuto faz 
ou não 
mas 
a vida muda 
a vida muda o morto em multidão.

2 comentários:

  1. escancarando a dor de ser o que se é sem sem poder ser o que se sonha ser...pobre América do sul!
    Um abraço

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  2. Sublime e bela interpretação! Parabéns, Guaraciaba!

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